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Em sessão histórica, STF se posiciona contra Marco Temporal

O julgamento da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente teve conclusão parcial no último dia 21, com o resultado favorável aos povos indígenas, por um placar de 9 votos a 2. Trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365 com repercussão geral de uma ação movida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e os indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ.

Embora ainda seja necessário definir os detalhes sobre a execução da demarcação das terras indígenas, que estão dentro desta ação, o STF se posicionou em relação ao teor principal: a tese do marco temporal é inconstitucional.

Essa tese foi criada em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi usado. Em 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365.

Antes, em 2003, foi criada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, foi requerida pelo governo de Santa Catarina no STF. O argumento principal é de que essa área, de aproximadamente 80 mil m², não estava ocupada em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Por outro lado, os Xokleng argumentam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá. A área já foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) como parte da sua terra tradicional.

A repercussão geral do julgamento desse caso, em particular, tem como consequência um questionamento para cerca de 80 casos semelhantes em mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão pendentes.

Tal tese é considerada “inconstitucional” tanto pelo Ministério Público Federal quanto pelos povos indígenas, já que a Carta Magna reconhece expressamente o dever de respeitar a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos povos indígenas, e define os direitos destes povos como originários, ou seja, anterior à constituição do Estado brasileiro, cabendo a este apenas reconhecer e formalizar esse direito por meio das demarcações de terras indígenas ou reservas. O histórico de múltiplas violências sofridas por esses povos, incluindo assassinatos em massa e expulsão de seus territórios originais, teria sido “legalizado” caso essa tese fosse considerada constitucional pelo julgamento do STF.

O Analista Técnico de Políticas Sociais Rafael Xucuru-Kariri, lotado no Ministério da Educação, ressalta a importância da decisão do STF. “Ao negar a tese do marco temporal, o Supremo Tribunal Federal reconcilia o Brasil com sua própria história de esbulho, roubos e violências contra os povos indígenas. Uma história que precisa ser enfrentada para que possamos compreender o direito humano dos povos indígenas ao seu próprio território, como a Constituição de 1988 garante, definindo tal direito como originário”, afirma.

O julgamento foi iniciado em agosto de 2021, se estendendo por 11 sessões, tendo sido interrompido 3 vezes. A mobilização dos povos indígenas e das organizações da sociedade civil em prol da derrubada dessa tese logrou êxito na semana passada neste front de batalha.

Entretanto, as ameaças aos povos indígenas ainda são iminentes no Congresso Nacional, com a tramitação do Projeto de Lei nº 490/2007. Em maio de 2023, o texto-base desse PL foi aprovado pela maioria dos parlamentares, atendendo ao forte lobby de ruralistas (283 a favor, 55 votos contra e 1 abstenção). Ainda, há a Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2020 (PEC 215/2020), que visa transferir a competência para a demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Congresso Nacional. Isto é, a PEC 215/2020 propõe que a demarcação de terras indígenas seja feita por meio de um projeto de lei a ser aprovado pelo Congresso, em vez de ser uma atribuição exclusiva do Poder Executivo, como é atualmente. Felizmente essa proposta está arquivada, mas a PEC 156/2003, que estava apensada à PEC 215, passou a tramitar de maneira autônoma, e há diversas outras apensadas, muitas delas com o mesmo teor. Portanto, a vigilância contra tais ameaças não pode cessar.

Em estudo inédito, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia revelou as possíveis consequências da combinação entre a aprovação do PL nº 490/2007 e da tese do Marco Temporal pelo STF, estimando que “entre 23 milhões de hectares e 55 milhões de hectares de áreas nativas sejam desmatados e possam desaparecer, resultando na emissão de 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de CO2 (gás carbônico), equivalentes a 5 e 14 anos de emissões do Brasil, ou a 90 e 200 anos de emissões dos processos industriais, respectivamente.” Em outras palavras, os territórios dos povos indígenas são essenciais não somente para a sobrevivência dessas etnias e suas culturas, mas também para a preservação do meio ambiente e de seus recursos naturais, tanto para o Brasil, como para o planeta, uma vez que cerca de 80% da biodiversidade mundial encontra-se em terras indígenas e comunidades locais, de acordo com as análises da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

“Para nós, povos indígenas, nossas terras não são meras mercadorias, como advogam os defensores do Marco Temporal, mas sim parte constituinte de nós mesmos. Elas são essenciais para nosso modo de estar e viver no mundo, mas também para o país. A verdadeira infraestrutura do Brasil são nossos rios, florestas e demais biomas, quase todos eles presentes nas terras indígenas. Garantir e defender essas terras como direito dos povos é uma das poucas possibilidades de futuro para a comunidade política brasileira”, complementa Rafael Xucuru-Kariri.

A ANDEPS tem acompanhado os desdobramentos da pauta e se posiciona a favor dos direitos dos povos indígenas, tal como expresso na Constituição Federal, uma vez que defender e promover o pleno gozo dos direitos sociais e humanos dos povos indígenas compõe o rol de políticas sociais elaboradas e executadas pelos Analistas Técnicos de Políticas Sociais. A ANDEPS também parabeniza os movimentos dos povos indígenas e da sociedade civil organizada na defesa destes. Estamos vigilantes e apoiamos essa luta, que é também nossa!