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NOTA | Novas Carreiras Transversais: conflitos conceituais e de atribuições com a Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais
O conceito de desenvolvimento tem sido historicamente estudado nas sociedades ocidentais, principalmente por economistas e cientistas sociais. Nessa trajetória, ele foi abordado sob várias perspectivas, sendo que o aspecto social consolidou-se como um de seus pilares estruturantes no pós-segunda guerra. Nesse contexto, surgiram os sistemas de proteção social e a visão de que o desenvolvimento não apenas é indissociável do bem-estar, como também só pode ser alcançado se consideradas as dimensões de dignidade da pessoa humana e do acesso a direitos sociais, políticos, econômicos e, porque não dizer, ambientais e territoriais.
Essa visão chega ao Brasil de forma inequívoca com a Constituição de 1988 em que são descritos como os três primeiros objetivos fundamentais da república, em sequência: 1. construir uma sociedade livre, justa e solidária; 2. o desenvolvimento nacional; 3. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais, e regionais. Desde então, o Brasil vem encampando políticas públicas universais e afirmativas buscando o desenvolvimento econômico e social, simultaneamente. Gradualmente, o país se afastou da perspectiva de que é necessário alcançar o crescimento econômico primeiro para posteriormente distribuir a riqueza gerada, vinculando essas dimensões. Esse alijamento faz prevalecer a compreensão de que a base social é inquestionável e estruturante, uma vez que o desenvolvimento “econômico” ou o desenvolvimento “sustentável” não podem ser alcançados sem justiça social.
Governos progressistas foram determinantes para essa inflexão. Neles, prevaleceu a visão de que “o pobre deve estar no orçamento”, “educação não é gasto, é investimento”, “ninguém come PIB”. A saúde, talvez, tenha demonstrado de forma mais dramática a inequívoca relação entre desenvolvimento sócio-econômico e políticas públicas sociais ao ficar escancarada a escassez de uma base produtiva nacional que fosse suficiente para fazer frente ao desafio da pandemia de Covid-19.
A segurança pública, historicamente marcada por uma abordagem repressiva e focada no controle do crime, vem sendo objeto de discussões teóricas que destacam sua natureza intrinsecamente social. Pesquisadores e especialistas defendem que a segurança pública deve ser compreendida como uma política social essencial. Ela tem grande influência no enfrentamento às desigualdades estruturantes, na qualidade de vida, na promoção da cidadania e no desenvolvimento socioeconômico. Nesse sentido, ela transcende a atuação policial para abarcar ações preventivas, educativas e comunitárias que abordem as causas estruturais da violência e da criminalidade, incluindo a violência de gênero e as desigualdades racial e social.
Para além do combate à violência, uma política de segurança pública moderna e eficaz precisa ser fundamentada na cidadania plena, na construção da paz social e na garantia dos direitos fundamentais. Deve articular-se de maneira transversal com outras políticas públicas, como saúde, educação, habitação e assistência social. Somente dessa forma, é possível transformar a segurança em um instrumento de promoção de justiça, equidade e reparação histórica, contribuindo para a consolidação de uma sociedade mais democrática e inclusiva.
Em 2009, Governo Federal, com a intenção de consolidar um corpo crescente de políticas sociais universais e afirmativas, criou a Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais, pela Lei nº 12.094/2009, e incluiu entre as suas atribuições as áreas assim consideradas “sociais”:
[…] áreas de saúde, previdência, emprego e renda, segurança pública, desenvolvimento urbano, segurança alimentar, assistência social, educação, cultura, cidadania, direitos humanos, igualdade racial e proteção à infância, à juventude, à pessoa com deficiência, à pessoa idosa e aos povos indígenas […]. (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12094.htm )
O exemplo mais recente dessa compreensão articulada entre desenvolvimento e política social é a Nova Indústria Brasil, cujo direcionamento estratégico aponta para grandes demandas sociais, nominalmente, Saúde, Alimentação, Moradia, Mobilidade, além de questões transversais como Sustentabilidade e Digitalização. Privilegiando o que se convencionou chamar de “Políticas Orientadas por missões”, criou-se um arcabouço em que o desenvolvimento econômico não apenas estaria vinculado, mas seria diretamente orientado às questões sociais prementes.
Tendo em vista essa conjuntura, causa extrema estranheza uma ação que se notabiliza por um retorno à visão setorial da política e da economia, e que tenderá a compartimentalizar iniciativas que o Estado vem se esforçando para integrar.
Trata-se da edição da MP nº 1.286, de 31/12/2024, na qual são criadas duas carreiras transversais: a Carreira de Desenvolvimento Socioeconômico (Art. 173), cujo único cargo denomina-se Analista Técnico de Desenvolvimento Socioeconômico – ATDS, e a Carreira de Desenvolvimento das Políticas de Justiça e Defesa (Art. 183) cujo cargo segue semelhante denominação, Analista Técnico de Justiça e Defesa – ATJD.
Segundo consta no artigo 175 da referida MP, as atribuições do cargo de Analista Técnico de Desenvolvimento Socioeconômico – ATDS são:
I – executar atividades de assistência técnica em projetos e programas nas áreas de desenvolvimento socioeconômico;
II – executar atividades de assistência técnica no planejamento, na implementação, na análise e na avaliação de políticas públicas que contribuam para o desenvolvimento regional e territorial sustentável, seja agrário ou urbano;
III – analisar a viabilidade econômica de projetos de investimento e de desenvolvimento sustentável;
IV – analisar e avaliar dados socioeconômicos que contribuam para o planejamento e o aperfeiçoamento das políticas de indústria, micro e pequenas empresas, comércio, serviços, comércio exterior, agricultura, infraestrutura, inovação e demais políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento socioeconômico do País;
V – subsidiar a supervisão, o planejamento, a coordenação, o monitoramento e a avaliação das empresas estatais; e
VI – subsidiar a definição de estratégias de execução das atividades de controle, monitoramento e avaliação das políticas de desenvolvimento socioeconômico. (negritos nossos).
No artigo 185 da referida MP, as atribuições do cargo de Analista Técnico de Justiça e Defesa – ATJD são:
I – executar atividades de assistência técnica no planejamento, na coordenação, na implementação e na supervisão de projetos e programas inerentes às áreas de justiça, defesa nacional e segurança;
II – proceder à análise e à avaliação de dados que contribuam para o planejamento e o aperfeiçoamento das políticas de justiça, defesa nacional e segurança;
III – subsidiar a definição de estratégias de execução das atividades de controle, monitoramento e avaliação das políticas de justiça, defesa nacional e segurança;
IV – promover e subsidiar os processos, os projetos e os programas finalísticos inerentes à estratégia nacional de defesa, à indústria da defesa, às políticas de ciência, tecnologia e inovação de defesa e aos demais programas do Governo federal para a defesa nacional;
V – promover e subsidiar as políticas de acesso e promoção da justiça, de segurança pública, de prevenção e repressão às drogas, de defesa da ordem econômica nacional e dos direitos do consumidor, de nacionalidade, migrações e refúgio, penal nacional, de direitos digitais e demais programas do Governo federal para a justiça e a segurança; e
VI – promover e subsidiar o planejamento e a coordenação das atividades de segurança da informação e das comunicações, incluídos a cibersegurança, a segurança de fronteiras e de infraestruturas críticas e demais programas do Governo federal para a segurança institucional. (negritos nossos)
Ora, dentre as atribuições e áreas afetas à Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais já constavam várias destas elencadas acima, como podemos ver a seguir:
Art. 3o. São atribuições do cargo de Analista Técnico de Políticas Sociais:
I – executar atividades de assistência técnica em projetos e programas nas áreas de saúde, previdência, emprego e renda, segurança pública, desenvolvimento urbano, segurança alimentar, assistência social, educação, cultura, cidadania, direitos humanos, igualdade racial e proteção à infância, à juventude, à pessoa com deficiência, à pessoa idosa e aos povos indígenas que não sejam privativas de outras carreiras ou cargos isolados, no âmbito do Poder Executivo federal; (Redação dada pela Lei nº 14.875, de 2024)
II – […]
III – identificar situações em desacordo com os padrões estabelecidos em normas e na legislação específica de atenção à saúde, previdência, emprego e renda, segurança pública, desenvolvimento urbano, segurança alimentar, assistência social, educação, cultura, cidadania, direitos humanos, igualdade racial e proteção à infância, à juventude, à pessoa com deficiência, à pessoa idosa e aos povos indígenas que não sejam privativas de outras carreiras ou cargos isolados, no âmbito do Poder Executivo federal, e proporcionar ações orientadoras e corretivas, de forma a promover a melhoria dos processos e a redução dos custos; (Redação dada pela Lei nº 14.875, de 2024)
IV – aferir os resultados da assistência à saúde, previdência, emprego e renda, segurança pública, desenvolvimento urbano, segurança alimentar, assistência social, educação, cultura, cidadania, direitos humanos, igualdade racial e proteção à infância, à juventude, à pessoa com deficiência, à pessoa idosa e aos povos indígenas, considerando os planos e os objetivos definidos no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Assistência Social e nas demais políticas sociais; (Redação dada pela Lei nº 14.875, de 2024)
V – proceder à análise e avaliação dos dados obtidos, gerando informações que contribuam para o planejamento e o aperfeiçoamento das ações e políticas sociais;
VI – apoiar e subsidiar as atividades de controle e de auditoria; e
VII – colaborar na definição de estratégias de execução das atividades de controle e avaliação, sob o aspecto da melhoria contínua e aperfeiçoamento das políticas sociais. (negritos nossos).
Questiona-se, deste modo, a justificativa do Ministério da Gestão, Inovação e Serviços Públicos para a criação destas duas carreiras com atribuições e áreas de atuação coincidentes e por que não dizer, concorrentes às atribuições e áreas do cargo de Analista Técnico de Políticas Sociais. A que serve?
As concepções de “desenvolvimento socioeconômico” e de “segurança” abarcadas neste diploma legal não encontrariam similar na legislação já existente? Não seriam por assim dizer “políticas sociais”?
A Andeps considera que tais concepções empobrecem o debate de pelo menos seis décadas em torno dos conceitos de “desenvolvimento” e de quatro décadas quanto ao conceito de “segurança pública”. Também involui nos avanços que as políticas sociais tiveram nas últimas duas décadas no Governo Federal, especialmente na busca pela promoção de uma visão integrada, intersetorial e transversal entre áreas e setores visando o “desenvolvimento humano e social” e a plena cidadania da população brasileira.
Aqui caberia uma breve distinção entre as atribuições e áreas de atuação previstas para o cargo de Analista Técnico de Justiça e Defesa que consideramos não serem coincidentes com as de ATPS: as atividades relativas à defesa nacional, das fronteiras, ou ao desenvolvimento científico e tecnológico de defesa. Entretanto, as áreas de justiça e segurança pública, nas quais se incluem as atividades de subsídio às políticas de acesso e promoção da justiça, de segurança pública, de prevenção às drogas, de defesa da ordem econômica nacional e dos direitos do
consumidor, de nacionalidade, migrações e refúgio, penal nacional, de direitos digitais, são, desde 2013, atribuições que os ATPS têm desempenhado.
No balanço de 100 dias de governo, no primeiro semestre de 2023, o Presidente Lula deixou clara a diretriz do governo de conciliar desenvolvimento econômico com inclusão social:
O Brasil voltou para conciliar novamente crescimento econômico com inclusão social. Para reconstruir o que foi destruído e seguir adiante. O Brasil voltou para ser outra vez um país sem fome. Ao mesmo tempo que prepara o terreno para obras de infraestrutura que foram abandonadas ou ignoradas pelo governo anterior, o Brasil voltou a cuidar de saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura, habitação e segurança pública.
A criação de carreiras diferentes para tratar de desenvolvimento (sócio)econômico e de desenvolvimento social se direciona para o lado oposto à direção decidida pelo próprio Governo.
Desde 2013 há Analistas Técnicos de Políticas Sociais trabalhando nos ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; da Justiça e Segurança Pública; do Desenvolvimento Agrário; do Trabalho e Emprego; das Cidades; e da Integração em várias pautas citadas entre as atribuições destes dois novos cargos. Ciência, tecnologia e inovação, críticos para o desenvolvimento econômico, são temas do cotidiano de ATPS no
Ministério da Saúde.
Não seria o caso de alterar as atribuições da Carreira já existente para abarcar eventuais atribuições ou áreas não contempladas e realizar novos concursos com foco nessas atribuições?
A criação de novas carreiras com atribuições semelhantes às da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais é medida totalmente oposta às diretrizes publicadas pelo próprio MGI na Portaria nº 5.127, de 13 de agosto de 2024, que “Estabelece diretrizes e critérios a serem observados pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal – SIPEC, na elaboração de propostas de criação, racionalização e reestruturação de planos, carreiras e cargos, bem como ampliação do quantitativo de cargos efetivos”. Destacamos algumas das diretrizes estabelecidas para a criação de novas carreiras pelo mesmo Ministério que elaborou a Medida Provisória são:
[…]
II – simplificação do conjunto de planos, carreiras e cargos efetivos;
III – agrupamento de carreiras com atribuições semelhantes;
[…]
VI – priorização de planos, carreiras e cargos efetivos que possam atuar de modo transversal;
VII – promoção da movimentação de pessoal que garanta aproveitamento adequado da força de trabalho;
Assim, a criação de novas carreiras com atribuições e áreas de atuação coincidentes com a Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais contraria as diretrizes estabelecidas pelo MGI de simplificação do conjunto de planos, carreiras e cargos efetivos e de agrupamento de carreiras com atribuições semelhantes. Além disso, também impacta na transversalidade das carreiras, o que também é uma diretriz da referida Portaria.
É notório que o caminho escolhido pelo MGI e o Governo Federal vai na contramão das diretrizes governamentais citadas: a inovação na gestão pública, especialmente na racionalização de recursos humanos e financeiros na gestão das carreiras federais. Portanto, entende-se que é imperiosa a mudança normativa no sentido de:
1. Alterar as atribuições da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais para abarcar eventuais atribuições ou áreas não contempladas que denotam clara intersecção de atribuições com as carreiras criadas pela referida Medida Provisória;
2. Preencher os cargos vagos da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais – ATPS nos próximos anos (são 2400 cargos e no momento temos apenas 734 ocupados, 500 ainda a ingressarem pelo CPNU);
3. Retirar da MP a previsão de criação destas duas carreiras citadas.
Associação Nacional da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais – Andeps