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“Quem estava em Brasília não via as necessidades do território”: ATPS Karen Bezerra traz pontos críticos na Política de Saúde Indígena

Maior reserva indígena do Brasil, a Terra Yanomami registra nos últimos anos agravamento na saúde dos indígenas, com casos graves de crianças e adultos com desnutrição severa, verminose e malária, em meio ao avanço do garimpo ilegal. Só em 2022, segundo o governo federal, 99 crianças Yanomami morreram – a maioria por desnutrição, pneumonia e diarreia – doenças evitáveis. A estimativa é que, ao todo no território, 570 crianças tenham morrido nos últimos quatro anos, no governo de Jair Bolsonaro.

Em nota, a ANDEPS se manifestou, em 23 de janeiro, sobre a situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, declarada pelo Ministério da Saúde, em decorrência de desassistência à população Yanomami. No documento, a Associação apoia a criação de um Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, que prevê a elaboração de plano de ações estruturantes com vistas ao enfrentamento à desassistência sanitária das populações em território Yanomami e aos problemas sociais e de saúde dela decorrentes.

Para os membros da carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais, o problema é conhecido, e, inclusive, vivenciado devido à atuação de vários ATPSs nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Para contribuir com o Gabinete de Transição Governamental, a ANDEPS liderou, no final de 2022, a formulação de vários documentos com diagnósticos e propostas, a partir das expertises de Analistas de Políticas Sociais, sobre diferentes áreas do governo federal. Assim, um extenso relatório contendo um diagnóstico sobre as estruturas que implementam a Política de Saúde Indígena foi elaborado e debatido com os futuros integrantes do governo federal. 

Um dos pontos críticos apontados sobre a Política de Saúde Indígena está expresso pelos ATPSs ao denunciar os alarmantes índices de morbimortalidade entre os povos indígenas e os limites da atuação dos DSEIs nos últimos anos. Para analisar a crise humanitária que o povo Yanomami está sofrendo e a situação que abate a saúde das demais populações indígenas, conversamos com Karen Emanuella Fernandes Bezerra, ATPS que atua no DSEI Araguaia. 

Pontos críticos na Política de Saúde Indígena

Para Karen, uma das origens da crise é o isolamento das equipes que estão nos territórios e que realizam a Atenção Primária à Saúde – específica e diferenciada – com muitos problemas estruturais, como o reduzido corpo de recursos humanos e que necessita de qualificação constante para atuar sobre as novas questões que surgem.

“Estamos isolados porque a gente compõe uma rede de atenção à saúde, que nos últimos anos, também foi fragilizada, e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) não fazia a articulação a contento. É verdade que a gente se fragilizou ainda mais no último governo, porque trabalhamos em um órgão que tem a interculturalidade como uma das principais questões, só que não se consegue trabalhar ativamente a interculturalidade, de modo a respeitar os saberes indígenas, quando as urgências drenam todas as nossas energias”. 

“O ideal é que o trabalho fosse estruturado de modo que a prioridade da nossa atuação fosse o trabalho intercultural, voltado mais para a promoção à saúde e prevenção de doenças. Mas as situações são tão graves que isso não é possível, estamos atuando sobre o dano instalado e, em alguns casos, até prepondera o saber do não-indígena, o que é muito ruim para a saúde indígena”. 

“Quanto à estrutura institucional, passamos por um processo de muitos cortes, que têm que ser revertidos o quanto antes. Hoje, corre-se o risco, inclusive, de se suspender atendimentos pela falta de combustível. A PEC 32/2022, que foi aprovada, vai reverter isso, e é urgente. Para se melhorar o atendimento, as estruturas precisam ser reforçadas com mais servidores de carreira – que hoje, aliás, estão sobrecarregados – e a equipe existente acaba não acompanhando a contento os profissionais que são contratados pelas entidades conveniadas, porque está absorvida com questões administrativas e burocráticas”.

Principais ações para se retomar o trabalho nos DSEIs

Diante da mudança de prioridade do governo federal, em especial do Ministério da Saúde, em lidar com a Política Especial de Saúde Indígena, que se reinicia com a nova gestão, para a ATPS Karen Emanuella Fernandes Bezerra, a prioridade para fortalecer a atuação nos DSEIs é reverter os cortes de orçamento. Ela acrescenta que os DSEIs precisam de mais apoio de Brasília, do nível central da SESAI, com apoiadores que compreendam as especificidades do território. 

“Foi notório nos últimos anos, que quem estava em Brasília não via as necessidades reais do território. Então, é preciso de Brasília aqui também. Com os Yanomamis, que é a situação mais delicada na atualidade, Brasília tem que estar presente. Os cortes têm que ser revistos, assim como a questão da estrutura. Para se ter uma ideia, na TI Yanomami, por conta do garimpo, teve uma unidade básica de saúde indígena que foi quase devorada pela cratera do garimpo. Em resumo: é mais orçamento, mais gestão, uma gestão próxima dos indígenas, das terras indígenas e dos servidores que estão aqui, sem perder de vista o maior número de servidores”.

Escuta e participação dos povos indígenas

Karen observa que, a partir da transição de governo, os indígenas têm se organizado de forma a estar nos processos de escolha e de gestão dos DSEIs, por exemplo. Para ela, isso é muito salutar.

“Essa ação tem que ser acompanhada não só pelas associações indígenas, mas também pelo Ministério dos Povos Indígenas. Vamos reforçar que o Ministério dos Povos Indígenas nasce com o papel de articulação transversal das políticas públicas. E, nesse contexto da Saúde Indígena, a indicação dos novos coordenadores de DSEIs, que são indígenas, é uma medida fundamental para que se  possa compreender tudo que acontece no território e como funciona a máquina pública. Para isso, é preciso conhecer o que pode ser feito por Brasília, no nível central, pensando junto com essas lideranças que estão aqui no território. Então existe esse momento bem efervescente de participação dos indígenas e isso tem que ser direcionado para que chegue na gestão dos DSEIs de uma forma muito qualificada”.